A postura do Banco Central Europeu (BCE) no último capítulo da Crise da Dívida Soberana é particularmente curiosa. À medida que se foi tornando cada vez mais inevitável uma reestruturação da dívida da Grécia, a instituição foi-se tornando cada vez mais veemente a sua oposição a tal solução, ao mesmo tempo que tomava posições no sentido de forçar os líderes políticos da Zona Euro a aumentar o apoio ao país e, em última análise, aos restantes países em dificuldades. Especula-se que esta não seja uma mera posição técnica, ou até ideológica, mas uma opção de sobrevivência, uma vez que o BCE tem agora no seu balanço dívida pública dos países periféricos, que foi adquirindo nos mercados secundários, à qual se soma a dívida recebida como colateral do financiamento concedido aos bancos desses mesmos países. Recentemente – e num jogo político sem precedentes – o BCE vincou a sua posição. Por um lado, deixou de comprar dívida daqueles estados, o que os deixou – a Grécia em particular – numa situação mais difícil. Por outro, avisou que dívida grega reestruturada deixaria de ser aceite como colateral, o que deixou os bancos gregos numa posição igualmente desconfortável. Resumindo, o BCE pretende, ao mesmo tempo, deixar a posição altamente interveniente que tem tido no último ano (que causava bastante “comichão” aos seus técnicos desejosos de se cingir ao mandato único de estabilidade de preços), e pressionar os líderes políticos dos países grandes a intervirem consistentemente, libertando a instituição daquilo para que não foi treinada. Neste contexto, vai diabolizando cada vez mais a hipótese de uma reestruturação da dívida grega, qualquer que ela seja, afirmando as suas consequências catastróficas, nomeadamente provocando um contágio geral: aos bancos (gregos, dos restantes periféricos, e dos países centrais, credores do estado grego), aos países da região, e, em última análise, ao sistema financeiro mundial (são frequentes as comparações com a falência da Lehman Brothers).
Este posição tem pelo menos um atributo, pois precipita uma solução para o problema da região – a Zona Euro já anda há demasiado tempo a correr atrás do prejuízo. Todavia trata-se de uma solução que, atendendo à clara insustentabilidade da Dívida grega (não falando das dos restantes países), significa que em 2013 grande parte da dívida do país estará na posse do mecanismo europeu, do BCE e do FMI. Ou seja, pelo menos nos 2 primeiros casos, nas mãos dos contribuintes europeus. No limite, toda a dívida do país estará nas mãos desses organismos, uma vez que a única possibilidade de evitar uma reestruturação será provavelmente manter a ajuda internacional durante longos anos. Ajuda essa acompanhada de sacrifícios cada vez maiores, num país que não leu nas letras pequenas do contrato de adesão ao Euro a possibilidade destas consequências. Na verdade, a amostra do último ano permite por si só ver que o povo grego nunca aguentará a actual situação por longos anos.
Mas o problema maior é outro. Não faz sentido que um país na situação em que se encontra a Grécia não faça, no mínimo, uma reestruturação leve (alargando os prazos de pagamento ou baixando os juros). O contrário, sim, é bastante insólito, até historicamente. O expectável é que sejam os investidores – que concederam crédito contendo risco – a sofrerem as consequências de um risco que subestimaram. Até porque, recorde-se, não se trata apenas da Grécia, mas também, numa análise conservadora, da Irlanda e de Portugal que iriam necessitar de mais ajuda.
Há ademais uma falácia capital no discurso do BCE, pois uma reestruturação leve da dívida grega, sob determinados parâmetros, não acarretaria um contágio geral. Na realidade, o mercado já está, agora, a admitir uma reestruturação parcial da dívida grega, ou seja, parte desse efeito já se faz (ou fez), na verdade, sentir. Assim, uma reestruturação que não ultrapassasse a diferença entre o valor original e o actual não seria prejudicial (poderia até, como já aconteceu noutros casos, ser benéfica, se fosse mais branda do que o actual valor de mercado). O principal problema de uma reestruturação diria respeito aos bancos (mas não só), pois estes, embora sentindo já o efeito de contágio indirecto (na dificuldade de acesso ao crédito), não sentem, paradoxalmente, todo o efeito de contágio directo, uma vez que, segundo as regras regulatórias europeias, podem não alterar o valor de parte das obrigações públicas no seu balanço independentemente da variação da cotação destas (que, como se sabe, no caso da Grécia, diminuiu muitíssimo no último ano). A lógica desta possibilidade reside na premissa de que, planeando manter esses títulos até á maturidade, variações pontuais de preço não são relevantes. No actual cenário tal não faz, porém, sentido algum, na medida em que a forte queda do preço dos títulos não é pontual, como já foi sobejamente percebido. Trata-se, por conseguinte, em certo sentido, de um artifício contabilístico que tem permitido aos bancos europeus manterem-se relativamente capitalizados. Este é, então, o principal obstáculo a uma reestruturação ordeira da dívida da Grécia. Em todo o caso, em determinados parâmetros, uma reestruturação leve poderia ser inócua também neste caso, desde que fizesse uso da mesma lógica, e permitisse aos bancos não mexer no valor que os títulos têm no seu balanço. Uma reestruturação leve – mesmo que bem sucedida – não significaria que se evitasse uma reestruturação mais forte. Porém diminuiria com certeza a probabilidade de tal vir a ocorrer, uma vez que minimizaria os efeitos de contágio que, recorde-se, estão já a ocorrer nos mercados.
Voltando ao BCE, a atitude da instituição tem, com efeito, um lado positivo, ao forçar os líderes europeus a agir. Admitindo que ninguém considera seriamente a hipótese do fim do Euro, os países da região têm rapidamente que partir para uma solução que passe, no mínimo, por uma união fiscal. O BCE considera que o caminho mais curto passa por conceder ajuda infinita aos países em dificuldades. Considero que tal é politicamente inviável. Ao invés, uma reestruturação ordeira da dívida da Grécia – bem como das de Portugal e da Irlanda – se acompanhada de um forte e, sobretudo, unido apoio político, poderia abrir portas a que finalmente se completasse o passo dado com a introdução da Moeda Única.