“Casei com um comunista” de Philip Roth

A obra de Philip Roth retrata a história de Iron Rinn, um famoso radialista na América dos anos 50, alvo da perseguição McCarthista pelas suas ligações comunistas, no famoso período da “Caça às Bruxas”. A história, contada por um discípulo de Rinn, cujo papel na história é activamente residual mas fundamental para uma maior proximidade com as personagens, mostra o outro lado da América, terra das oportunidades, da democracia e das liberdades individuais. O lado da discriminação, da perseguição política, do racismo, com particular incidência em certos estados americanos (dada a sua realidade federal).

No entanto, o livro ultrapassa muito as fronteiras do romance político. Incide muito nas fragilidades psicológicas de Rinn, nas suas contradições e incoerências ideológicas, na sua impulsividade natural, na complexidade das relações inter-pessoais entre ele e as restantes personagens – sua mulher Eve, sua enteada Sylphid, seu irmão Murray ou o guia espiritual O’Day, que, embora praticamente nao apareça na história, está espiritualmente omnipresente – e entre elas próprias (destaque para a exploração profunda da relação atribulada e curiosa entre Eve e Sylphid, entre mãe e filha) ou no existencialismo, fazendo-o com uma intensidade e uma distinção inequívocas. Esta é uma característica comum a muitas das grandes referências literárias, a da opção por pegar em qualquer realidade concreta e transportá-la para o paradigma da reflexão filosófica sobre a condição humana, algo que é feito com grande brilhantismo pela obra de Milan Kundera, com quem este livro tem grandes pontes de contacto, mesmo tendo em atenção que o papel de opressores e oprimidos está relativamente invertido.

Fica, de seguida, uma breve escolha de alguns excertos desta obra-prima:

– a degradação do idealismo político: “Não é necessário uma perspectiva ampla da vida para se ascender ao poder. Uma perspectiva ampla da vida pode, na realidade, ser o pior dos impedimentos, ao passo que a ausência de uma visão ampla pode ser a mais esplêndida das vantagens”;

– a visão meramente corporativa de alguns sindicatos: “o sindicato é para mim uma grande desilusão. Acabou por se tornar uma organização ávida de dinheiro. Só os salários é que contam. O que fazer para educar os miúdos é a última coisa com que se preocupam”;

– a manipulação Orwelliana da memória na América McCarthista: “Não teria havido qualquer razão para a fotografia não ter continuado lá pendurada se o Ira não tivesse ido parar à lista negra dezasseis anos depois. Soube que a tiraram de um dia para o outro, como se a vida dele se tivesse transformado em nada”;

– a desmistificação do sonho comunista: “Construiremos algo de maravilhoso… Mas nós sabemos como são os nossos irmãos, não sabemos? Não prestam(…) E nós também não prestamos. Então como é que pode ser maravilhoso? Não é preciso nem cinismo nem cepticismo, basta a capacidade média de observação do ser humano para nos dizer que isso não é possível.”;

– utopias… “O Ira chamava comunismo ao seu sonho utópico, a Eve chamava Sylphid ao dela. A utopia da mãe acerca da filha perfeita, a utopia da actriz acerca do faz de conta, a utopia da judia de não ser judia”;

– a intromissão ideológica na relação conjugal: ” quando se resolve contribuir com um problema próprio na agenda da ideologia, tudo o que é pessoal é comprimido e secundarizado (…). Tudo o mais que o Ira era para a Eve (bom marido, mau marido, cordato, agressivo, compreensivo, insuportável, fiel, infiel), tudo o que representa esforço conjugal e erros conjugais, tudo o que é consequência do facto de o casamento nada ter a ver com o sonho é minimizado, e o que resta é aquilo que a ideologia pode utilizar.”;

– o poder, o prazer, a tentação e a ambiguidade da traição: “É possível manter a integridade ao mesmo tempo que se trai patrioticamente, ao mesmo tempo que se obtém uma satisfação que toca as raias do sexual com as suas componentes ambíguas de prazer e fraqueza, agressão e vergonha, a satisfação da desestabilização. (…) A traição encontra-se na mesma zona do prazer perverso, ilícito e fragmentado. Um tipo de prazer clandestino, interessante e manipulador com muitas características que o ser humano considera atractivas.”;

– o culto do espectáculo mediático, da irracionalidade, do sensacionalismo: “O McCarthismo como a primeira florescência no pós-guerra da irracionalidade americana que agora tudo perpassa. O McCarthy nunca se preocupou com o comunismo (…) a desonra moral como divertimento público. O McCarthy era um empresário do espectáculo e, quanto mais violentas as cenas, mais mirabolantes as acusações, maior a desorientação e mais desbragada a galhofa”;

-a falência de uma concepção de vida demasiado terrena, correcta e racional: “A Doris pagou o preço da minha virtude cívica. Quando te libertas, como eu tentei fazer, de todas as ilusões óbvias (religião, ideologia, comunismo), ainda te resta mesmo assim o mito da tua própria bondade, que é a ilusão derradeira, aquela em nome da qual eu sacrifiquei a Doris”.

Nota póstuma: Não vale a pena acrescentar qualquer outra conclusão, porque o essencial ficou dito e porque a diversidade e a profundidade dos excertos falam por si. Tudo o que pudesse escrever de seguida pouco ou nada iria acrescentar de valioso.

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4 respostas a “Casei com um comunista” de Philip Roth

  1. FNV diz:

    Uma dúvida: Já citei posts seus sobre educação e calculando que V. seja o mesmo João Torgal do 5 Dias, o que aconteceu aos outros membros da Mesa? Estão num laogai?
    b
    logo-abraço e continuação de boa escrita ( vou ler o seu texto sobre os rankings no 5Dias).

  2. João Torgal diz:

    Sim, sou efectivamente o mesmo que escreve no “5Dias” (aliás, costumo postar aqui o que escrevo por lá, embora recentemente com menos cuidado, dado que este blog está um pouco abandonado).

    Quanto aos outros, julgo que estão a hibernar por tempo indeterminado, algures entre a Patagónia e o Polo Norte. Pelo menos “escritamente” falando…

  3. Luciano diz:

    Tenho um blog sobre curiosidades e gostaria de saber de você se haveria a possibilidade de você me ajudar
    colocando o link do meu blog no seu e eu faria o mesmo com o seu,meu nome é Luciano e sou Bombeiro Militar
    no Rio de Janeiro,
    parabéns pelo trabalho que vem fazendo com seu blog e fico aguardadando sua resposta

    Curiosidades
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    Tenho um blog também sobre bombeiros
    Vida de bombeiro
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    Visite os meus blogs e veja se pode me ajudar colocando o link de algum deles no seu,um abração

    Caso tenha interesse entre em contato comigo pelo email lmturl@gmail.com,mandando mensagem em qualquer blog meu
    ou pelo orkut http://www.orkut.com.br/Main#Profile?rl=ls&uid=5076013500225631247

    MSN; bombeiro_dorio@hotmail.com

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