…separados quase 70 anos no tempo.
O Grande Ditador, de Charlie Chaplin (1940)
Esta é a história paralela entre duas personagens, ambas interpretadas por Chaplin: um sanguinário ditador, Adenoide Hynkel, e o seu objectivo de dominar o Mundo e um barbeiro judeu, internado durante largos anos por questões de amnésia e de falta de noção do tempo e que sai do hospital num cenário político e social completamente diferente, em que os judeus são humilhados e chacinados pelos arianos (como diz o autor no início do filme, um período em que “a loucura predomina, a liberdade desaparece e a humanidade levou um pontapé”)
Foi no pré guerra e no início da 2ª Guerra Mundial que Chaplin concebeu esta obra-prima. Como tal, uma sátira ao nazismo e ao holocausto, como é este filme, facilmente poderia resultar numa obra de um mau gosto profundo (o próprio Chaplin disse anos mais tarde que se tinha arrependido de ter feito o filme). No entanto, bem pelo contrário, este filme é a prova máxima de que, quando feito com distinção, inteligência e classe, o humor não pode ter tabus, mesmo nos assuntos mais delicados, especialmente quando tem propósitos bastante mais alargados do que apenas fazer rir. Existem por aqui momentos verdadeiramente hilariantes (por exemplo, as cenas da moeda, da barbeagem ao som de Brahms e do encontro entre Hynkel e Benzino Napoloni – Mussolini, pois claro – são geniais), mas também outros de natureza mais dramática e introspectiva e que muito nos fazem pensar. Muito mais do que um filme sobre o nazismo, é, como todas as obras maiores, um filme intemporal, com uma mensagem de idealismo, de humanismo, de esperança e de apelo ao inconformismo popular que faria tanto sentido na época, como faz no presente ou fará no futuro. Neste contexto, é essencial destacar o final, seguramente um dos finais e um dos discursos mais brilhantes e incontornáveis da história de cinema. Fica aqui um excerto desse discurso:
Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos esse poder, unamo-nos todos. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos dê uma oportunidade de trabalho, que dê futuro à junventude e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que ditadores têm subido ao poder. Mas eles mentem! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores libertam-se e escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abolir as barreiras nacionais, terminar com a cobiça, o ódio e a prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à felicidade de todos nós. Em nome da democracia, unamo-nos!
P.S. 1: Os Estados Unidos, revelando uma profunda intolerância (para não dizer estupidez), uma imagem de marca bem patente na história americana, proibiram o filme em alguns locais e colocaram entraves à presença de Chaplin no país. Tudo isto por considerarem o filme uma ode ao comunismo, não percebendo o óbvio, ou seja, que tem um alcance muito maior.
P.S. 2: Apresentei este filme recentemente no programa 1X2 da RUC. Brevemente estará o podcast no blog do programa (www.1x2ruc.blogspot.com)
Oi Va Voi – Travelling the Face of the Globe (2009)
Nos últimos anos surgiram bastantes projectos americanos que aliam a uma forte sensibilidade pop a influência nas sonoridades originárias do Balcãs e do leste europeu. Nomes como Devotchka, Gogol Bordello, Beirut ou A Hawk and a Hacksaw são alguns dos nomes da face mais visível dessa fusão. Em contrapartida, o mesmo não se passou em terras britânicas, onde as movimentações folk em redor dos ritmos sonoros provenientes dessas regiões geográficas praticamente não se fizeram sentir. Os Oi Va Voi são um dos poucos exemplos dessa realidade, com destaque para a recriação da música judaica, fruto da ascendência familiar de alguns dos seus membros, contando com 3 discos editados antes de 2009, mas com um reconhecimento público relativamente reduzido.
Travelling the Face of the Globe é o 4º album de originais e mantém as premissas dos discos anteriores, ou seja, música judaica (klezmer e companhia), outros ritmos do leste europeu e, se calhar, até latinos e, pontuando essa mistura de sons, uma clara estrutura pop. O início do disco é muito forte. O requinte e a delicadeza dos arranjos de “Waiting”, a profunda espiritualidade de “I Know What You Are” ou o ritmo irrestível do tema título, são, desde logo, um prenúncio para um grande disco. O tema seguinte, “Every Time”, single de apresentação, é um dos poucos passos em falso. A ideia de ter como single um tema com um formato mais easy-listening e baladeiro não foi definitivamente uma boa ideia, como se comprova ouvindo o tema. O outro passo em falso talvez seja, embora em proporções menores, “Foggy Day”, que nos remete um pouco para o ambientalismo dos Zero 7, mas em formato bastante menos interessante. Em todo o caso, nada que diminua acentuadamente o valor do disco e que impeça a existência, por aqui, de outros grandes momentos, como o intimismo presente na adaptação do tradicional hebreu “S’brent”, com voz da húngara Agi Szalóki, os toques etéreos de “Wonder”, o profundamente contagiante “Long Way From Home” ou, a fechar da melhor forma este Travelling the Face of the Globe, a perfeição pop de “Photograph”, com a voz do francês Dick Rivers.
Em suma, pode ainda não ser desta que os Oi Va Voi obtenham o merecido reconhecimento mediático, mas nem por isso este deixa de ser, para mim, um dos grandes discos editados nesta primeira metade de 2009.
Como o único tema disponível do disco para aqui colocar é o single “Every Time”, que definitivamente não o representa da melhor forma, deixo-vos “Ladino Song” de Laughter Through Tears de 2004.
P.S. Este texto será também publicado no blog http://www.popoconstrutor.blogspot.com, programa de pop da RUC, no qual o álbum foi destaque na semana transacta.